terça-feira, 22 de setembro de 2009

Um breve conto, para colocar um pouco de fantasia na semana.

Eu o escrevi em 2004, há cinco anos, mas espero que gostem. Ele fala um pouco sobre a finitude da vida e de como o modo como a vivemos parece retornar a nós no momento de nossa morte.

A última valsa
Matheus de Mesquita Silveira

Falaram-me que hoje iria chover e eu não acreditei. Agora estou aqui, ensopado e com frio, perdido no labirinto de prédios do centro da cidade. Consigo ouvir o melancólico assovio do vento que passa por entre os arranha-céus. A neblina não me deixa ver nada do que está ao meu redor. As trevas, rasgadas pela fraca luz que sai dos postes, esconde segredos que me angustiam somente ao pensar, e nenhum outro som consigo ouvir além dos frios passos que dou em direção ao desconhecido.

Acendo um cigarro, na esperança de que a fumaça que emana dos meus pulmões possa me camuflar entre as densas brumas. A cada passo que dou tenho a sensação de que pode ser o meu último, mas o mais estranho é que essa sensação me traz um alívio. Saber que poderei ter meu fim na próxima esquina me deixa mais vivo, faz meu coração bater mais forte. Sentir o cheiro da morte que espreita na escuridão me faz delirar, sonhar com o dia em que me libertarei de todas as amarras e de todas as culpas.

Sigo caminhando, deixando o vento cortar minha pele como uma pequena navalha. Vou me retalhando aos poucos, deixando que o vento leve o aroma do sangue até meus supostos predadores. Cansei de ser o caçador, não mais desejo dominar ou retalhar, minha sede assassina se esvaiu junto com as últimas gotas de sangue do amor que eu matei. Sigo, ainda que trêmulo, ao encontro do meu algoz. Caminho como a presa que inocentemente invade o território inimigo, sem ter a consciência dos perigos que a aguardam.

Trilhei muitas vezes esse caminho e fiz muitas vítimas nessas trevas. Bebi o sangue quente das mais inocentes criaturas e saciei minha sede das mais variadas formas. Mas o estranho é que nunca me senti tão bem como agora. O medo do fim e a agonia da suposta dor que irei sentir me completam, me tornam um. O suor frio que escorre em meu rosto, a chuva que molha minhas roupas e o sangue que forma meu rastro, tudo isso me completa, como que se o delírio e a lucidez dessem as mãos e dançassem uma valsa não tocada por muito tempo.

Apresso os meus passos e sinto o meu coração bater mais forte. O som dos trovões se mescla às batidas em meu peito numa harmonia catatônica, como um forte bate-estaca. Sou só em meio às trevas, como que um sussurro da lua no meio da noite infinda, como a última vela que não se apaga. Mas essa chama quer ser apagada, ela chegou ao auge, a plenitude e não deseja sentir sua decadência. Ela anseia o fim antes que tudo desmorone, embora saiba que isso não mais possível.

A chuva parou e o vento não mais pode ser sentido. Os estragos estão feitos e as cartas estão postas, não há tempo para mais nada. Na escuridão surge a silhueta de uma bela mulher, refletindo a fraca luz da lua que passa por entre as nuvens que se dissipam. Sim, lá está ela, minha executora, a dama destinada e me dar o último beijo. Aquela cujos profetas disseram que aliviaria toda a agonia, que cicatrizaria todas as feridas. A amazona cujas presas não morrem, mas se libertam.

Eu me aproximo, ofegante, tento alcançá-la com o que me resta de forças. Mas quanto mais perto chego, mais pesado meu corpo fica e mais distorcida sua imagem é. Não resisto e, num último esforço, me jogo aos seus pés. Abro os olhos e sinto o calor dos primeiros raios de sol. Vejo o brilho angustiante do amanhecer e não mais vejo aquela que tanto procurei. Não mais sinto sua presença e, lentamente, sinto o último sopro de vida deixar o meu corpo.

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