sexta-feira, 3 de julho de 2009

Saramago intermitente: a morte substantivada

“Viver de morte, morrer de vida” Heráclito

A morte cansou. Assim como o trabalhador que dá duro todos os dias e não é reconhecido, a morte fez greve por tempo indeterminado. Qualquer pessoa com alguma experiência na relação com o mundo sabe que têm certas coisas que só são valorizadas quando deixam de estar. É até paradoxal: uma das possibilidades da morte é ser o fim; e Saramago instiga seu leitor a pensar o que seria a não existência da morte, o fim do fim.

“É um milagre! Neste novo ano ninguém mais morre, Deus até que enfim reconheceu a gloria da humanidade. Vamos festejar, afinal, fomos o país escolhido para a vida eterna.” Essas foram as primeiras reações de um povo embriagado, do qual seu medo mais intenso, fonte de tantos outros, perdeu o sentido.

Mas logo os problemas começaram a aparecer, nas questões praticas de gestão de um país, nas bases dogmáticas da Igreja, nas casas simples, onde as famílias velavam os que na fronteira da morte aguardavam. A vida absoluta logo azedou; a não morte, afinal, não pode ser o sinônimo de vida.


Assim como em Ensaio Sobre a Cegueira, na obra em tela, Saramago descreve a imagem de uma

sociedade sem as bases que a fundamentam: tire as bases e as ações tomam outras formas. Em face às rodas do capitalismo, logo formou-se uma bem organizada empresa para dar conta do perdeu a naturalidade, mas manteve a necessidade. A maphia, organização em questão, tratava de levar as pessoas que pela morte ansiavam ao outro lado da fronteira, onde a greve não havia despontado. O aspecto das mazelas sociais é bem desenvolvido por Saramago, mas é outro aspecto que me despertou mais interesse. A morte toma aqui a forma de uma mulher, e sua greve não foi causada por um melhor salário ou uma almejada promoção; a morte, que não era humana, passava por uma crise existencial.

A crise pela qual passava a morte não era uma crise de consciência por mandar as pessoas para o temível desconhecido ou por tirá-las do mapa. Quando as pessoas passaram a desejá-la, mesmo não sendo suicidas ou deprimidas, ela voltou ao seu trabalho com serviços extras, pois cada pessoas recebia agora um aviso de uma semana de antecedência, para resolver suas pendências terrenas. Outro motivo de caos, fruto de suas intermitências. Mas a morte se sentia sozinha. Que mulher não deseja um ombro para desabafar, ouvir uma voz que acalme o espírito, naqueles dias em que nem a sua voz ela quer ouvir? A morte também sente, e isso ela lembrou quando uma de suas cartas sempre voltava.

Como não conseguia fazer a carta de aviso chegar ao violoncelista da orquestra, a morte resolveu se personificar para entregá-lo pessoalmente. Mas entregar simplesmente pareceu aborrecê-la. “Oras, já que vim até aqui, quero respirar um pouco o ar do lado de cá”. E foi assistindo a orquestra ensaiar e tocar, e observando as idiossincrasias do violoncelista que a morte conheceu a fonte das mais loucas intermitências. A música despertou seus sentidos, a morte também ama; e por amar conheceu a vida.

Saramago traz Wittgenstein para iniciar sua escrita sobre a morte, que não precisa representar somente o fim. Podemos pensar o mundo a partir da morte, e dar sentido a determinadas idéias somente por meio dela. A morte pode então ser possibilidade. Saramago não mostrou apenas uma morte intermitente; sua obra também o é. O leitor pode em um primeiro momento se decepcionar, mas, ao fim e ao cabo, olhando para nossas próprias vidas, compreendemos as intermitências da morte e de Saramago. No outro dia ninguém morreu: a morte morreu de vida.

9 comentários:

  1. Gostei do texto! Todos vamos, um dia, morrer, mas sempre nos soa como algo muito distante. A morte - na grande maioria das vezes e para a grande maioria das pessoas - não soa algo natural, apesar de ser, uma das coisas mais naturais que temos. Ao nascermos, começamos a morrer...

    Cris S.

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  2. Concordo contigo Cris. A morte faz parte da vida. Sem morte ela não teria sentido. O Saramago mostra isso no livro sob diferentes aspectos - políticos, econômicos, sociais, existenciais, religiosos e epistemológicos.

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  3. Martin disse ...
    No pensamento biológico a morte pode dar sentido a vida pois no natural a morte pode ser alimento para o outro, em especial na relação presa predador ou sucessão, pois alguém tem que dar espaço para que outro alguém possa viver, tendo a conotação de possibilidades e não de fim.

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  4. Sobre a morte na biologia vale ler a interpretação que Morin dá a frase de Heráclito, "viver de morte, morrer de vida". Tu conhece, né?!!! Ele fala na relação entre as célucas do nosso corpo, que morrem para nos manter vivos. O legal é que podemos interpretá-la de diferentes formas, assim como com a morte.

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  5. Esqueci de colocar a frase de Wittgenstein: "Pensa, por e.x., na morte - e seria estranho em verdade que não tivesse de conhecer por esse facto novas representações, novos âmbitos da linguagem"

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  6. Sim conheço a frase, graças ao "nosso" Hera ou Heráclito. Ainda ontem eu vi ele salvando a sua pele e de súbito subindo na árvore mais alta, pois os chachorros queriam pegá-lo. Sábio...
    Assim como as nossas células, mesmo depois de muitas estarem mortas e os especialistas declararem que a vida se foi (morte cerebral), ainda algumas células estão vivas e tentam com todas e máxima força dar continuidade a vida... com suas reservas de alimento se mantem e até se multiplicam, mas em vão, pois acabam se entregando a morte para dar vida.
    Martin

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  7. Penso que saramago na verdade mais brinca com os duplos sentidos e com os conceitos complexos de morte, interações sociais, etc. É ele sem dúvida um ótimo romancista, tanto pela linguagem quanto pelo encadeamento bem posto de pensamentos e ambiguidades cuidadosamente planejadas e criativas; o autor trabalha conceitos nada objetivos que tornam as possíveis análises profundas e variadas, mas vai sempre ter alguém querendo encaixar isso na realidade objetiva, e isso em literatura não significa muita coisa.

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  8. Renata, obrigada pela iniciativa de conversa, que são poucas por aqui; mas imprescindíveis para expandir ideias.

    Eu não entendi direito o que você quis dizer com “conceitos nada objetivos”. Existem conceitos que não sejam objetivos? E sobre encaixar as ideias literárias em realidades objetivas, me parece esse o único modo de usarmos a ficção para refletir sobre a realidade. Não é isso que os literatos fazem o tempo todo, pensar a realidade por meio da ficção?

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  9. Adorei o texto e gosto mto tambem do livro ja o li. o mais interressante da obra é q ela nos faz refletir sobre o lado bom e o ruim da morte em uma sociedade capitalista e nem a igreja escapa, ja que ela é uma das mais beneficiadas com a morte. E transformar a morte como personagem mulher so fez realçar mais a força da mulher na obra saramaguiana!!

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